Reportagem da equipe de “O Cruzeiro” 31 de março, na Guanabara. O Governador Carlos Lacerda prende líderes sindicais reunidos em assembléia permanente. Entre êles, Rafael Martineli, o que redundou na greve imediata da Leopoldina, como protesto. Dez vagões colocados numa passagem de nível, na Rua Francisco Bicalho, forma empurrados por choferes e passageiros de ônibus e lotações. (Mas os vagões voltaram a impedir o tráfego, até o fim da crise). Às 19 horas do dia de temor que era o 31 de março a Rádio Jornal do Brasil é invadida por um grupo de fuzileiros. Armados de metralhadoras, equipados para uma batalha. Motivo alegado para a invasão: divulgação de uma nota em que se dizia que o General Humberto Castello Branco se reunira com diversos oficiais-generais no Ministério da Guerra. O Ministério, àquela altura, era tido e havido como reduto do Govêrno Federal. A Rádio, daí em diante, passou a transmitir apenas noticiários internacionais, em seus programas noticiosos. Pouco mais tarde, naquela mesma noite, 200 soldados tomavam conta da Central do Brasil, que aderira à greve da Leopoldina. Na Avenida Presidente Vargas, o povo, que sem condução se concentrara em frente ao monumento ao Duque de Caxias, esperava ordeiramente os poucos caminhões que faziam o tráfego para o subúrbio. Vila Militar, já no dia seguinte, 2 h 30 m da madrugada. Preparo de tropas para serem enviadas a S. Paulo. Enquadrados, os oficiais negavam-se a prestar qualquer declaração. Cidade. Dia de cada um. 7 horas. Extensas filas se formam em frente às casas comerciais. Padarias, botequins, grandes mercearias e supermercados têm seus estoques esgotados. Lataria é o primeiro tipo de gênero que se acaba, entre o correr dos boatos nas filas. O saque não deixou de dar o ar de sua graça: a filial das Mercearias Nacionais, instalada nas proximidades do Parque Proletário da Penha, é assaltada por um grupo de favelados, quando os operários arrumavam (sem saber que estavam fazendo um gesto para entrar na história da sobrevivência) latas de conserva nas prateleiras. Um saqueador foi ferido pelas balas da guarnição da polícia estadual, que compareceu. Estamos em pleno 1º de abril, que desta vez não foi motivo de brincadeiras. 10 horas. Avenida Presidente Vargas e Rio Branco com muita gente em seu cruzamento, procurando apanhar carona para os seus bairros para os seus bairros da Zona Norte, em face da greve geral dos transportes coletivos da cidade. Nas esquinas, piquêtes nitidamente esquerdistas e antimilitares, que dominaram a Cinelância até às 14 horas. A sede do Diretório Regional do PTB, na Cinelândia, ampliava, por seus auto-falantes, a pregação revolucionária, incitando os populares a invadirem o Clube Militar, na esquina da Rua Santa Luzia. Na verdade, populares tentaram, pouco depois, invadir a sede da entidade de classe dos oficiais do Exército, no que foram obstados pelos disparos dos tenentes, capitães, majores, coronéis e generais que lá se encontravam. Os oficiais dispararam de início para o ar e por fim para valer. Às 15 horas, mais ou menos, um automóvel lançou volantes na Cinelândia, convocando o povo a participar de um comício de protesto contra o movimento revolucionário e que deveria realizar-se meia hora depois. 16 horas. É o sangue. A multidão tenta, mais uma vez, invadir e depredar o Clube Militar. Um carro de choque da PM posta-se diante do Clube. O povo presente vaia os soldados. Mais tarde, choques do Exército, chamados a pedido do Marechal Magessi, Presidente do Clube Militar, dispersam os agitadores. Que voltam na recarga, pouco depois (para sua infelicidade). Repelidos a bala, deixam em campo, feridos, vários manifestantes; emtre êles Labib Carneiro Habibude e Ari Oliveira Mendes Cunha, que morreram às 22 horas, no Pronto-Socorro. 16 horas e 30 minutos. Fuzileiros navais que protegem o Palácio da Laranjeiras retiram-se em 4 caminhões. Um dêles traz, como apêndice, um canhão. Mais atrás, um ônibus da Marinha. O restante da defesa era a guarda do Palácio por conta de alguns poucos soldados da Polícia do Exército, colocados na esquina de Gago Coutinho com Laranjeiras, e um pelotão de tanques do Regimento de Reconhecimento Mecanizado, formado por seis tanques, sob o comando de um primeiro-tenente. 16 horas 45 min. Radiopatrulha do Estado, com três homens da Polícia de Vigilância, se aproxima e conversa com o tenente dos tanques da Rua Gago Coutinho. O povo, estupefato, não entende de nada. Mais tarde, porém, se sobressalta. O oficial-comandante. O oficial-comandante ordena que avancem ao Palácio Guanabara. Sôbre as barricadas. O povo pensa que se trata do assalto ao Guanabara. Muitos correm, muitos se atiram ao chão. Mas para pouco depois, quando entendem a manobra, voltarem, para festejar os tanques que aderiram à causa revolucionária. Verdadeira multidão, que se encontrava às janelas dos edifícios, compreende logo o que se passa e aplaude o gesto das tropas federais que se bandeiam às fôrças revolucionárias. Uma chuva de papéis picados. Povo e tanques ultrapassando a barricada, até então indevassável. Alarido ensurdecedor. Na esquina de Laranjeiras e Pinheiro Machado, cento e cinqüenta metros do Palácio do Govêrno Estadual, param três dos seis tanques. Desce sua tripulação (desarmada). Em seu interior apenas os motoristas. Quando o Governador Carlos Lacerda desceu do Palácio Guanabara, protegido por sua guarda, os tanques estão à frente do Palácio. Guarnições marchando à sua frente. Canhões e metralhadoras desguarnecidos. Era a honrosa adesão. Adesão como passo para a pacificação sem sangue. Cartas na mesa, a multidão aumenta em frente à sede do Govêrno da Guanabara. È quando chega a notícia de que os fuzileiros navais se aproximavam para atacar o Guanabara. Correria geral, enquanto os alto-falantes pediam que o povo se retirasse da linha de fogo. (E foi a debandada.) Para a retirada ser honrosa, divulgou-se que se tratava de tropas de navais que vinham apresentar sua adesão. Prestar continência ao Governador Carlos Lacerda. E a praça ficou vazia, com policiais e tanques em posição de um combate que não veio, pois a notícia de que os fuzileiros terríveis se aproximavam para o combate de vida ou morte não passou de rebate falso. 17 horas e 30 minutos. Deixemos a Cinelândia e as imediações do Palácio Guanabara. Praia do Flamengo, 132, sede da União Nacional dos Estudantes. Grupos de jovens atiravam bombas incendiárias (coquetel Molotov) para o interior da UNE, àquela altura abandonada pelos dirigentes da entidade estudantil. Tinham fugido, sob as vaias dos que se aproximavam do local. Ou mesmo pelos fundos, pelos telhados do prédio, para edifícios vizinhos. Precipitadamente. Duas atitudes: uma senhora acompanhou os acontecimentos da UNE com um comentário – “Vi arder na UNE uma permanente provocação aos sentimentos cívicos e democráticos dos cariocas”. Um senhor, cidadão muito sério, pediu licença para os policiais. E se aproximou: “Quero” – disse – “colocar amanhã, aqui, substituindo essa faixa em que os estudantes desafiam a ordem constituída, uma outra em que se leia que será instalada brevemente, neste mesmo lugar, uma escola”. Mulheres e rapazes, em opinião unânime, diziam que nunca tinham visto um movimento com aquêle. “Êles pagaram” – diziam, contritos do que diziam. Apesar do que se disse, o incêndio não foi ateado dentro do próprio prédio, por quem lá se encontrava. Os dirigentes da União Nacional dos Estudantes livraram-se de livros e documentos, que forma incendiados e devolvidos para o interior do edifício em forma de tochas de fogo e objetos que se incendiava no interior das salas das entidades sob as siglas de UNE, AMES, UBES e outras. Os policiais e bombeiros que pouco depois chegaram para combater o incêndio disseram que encontram nas salas da UNE armas e munições. 18 horas. É a vez do jornal Ultima Hora. Enquanto no dia anterior o Jornal do Brasil era invadido por fuzileiros, a Ultima Hora se mantinha intacta. Agora, desta vez, o vespertino, na Rua Sotero dos Reis, era atacado. Grupos arrombaram a porta da garagem, puxando as viaturas para a rua, depredaram-nas e atearam-lhes fogo. Escritórios, idem. Rotativas, idem. Depoimento de testemunhas: a Operação Ultima Hora foi obra de comandos. Em pouco mais de 15 minutos os depredadores executaram a sua obra. (Ignoravam a existência de um cabo de alta tensão que, se atingido, causaria danos de extensão imprevisíveis, chegando mesmo a sacrificá-los.) O CARNAVAL O dia 1º de abril foi de tráfego congestionado, avançado passo a passo, no Rio de Janeiro. Especialmente na Zona Sul. Quase duas horas para ir de Copacabana ao Leblon, percurso que se faz normalmente em meia hora. Madrugada de colisões. Na praia de Botafogo três carros de passeio chocaram-se, em horas diferentes, contra postes e árvores. No Flamengo, um carro estadual, oficial, cujos ocupantes metralharam a sede da União Nacional dos Estudantes, estava completamente danificado. Colidira com um poste, após o atentado. Na Avenida Beira-Mar, duas Kombis chocaram-se contra um poste e uma árvore. Um carro de praça incendiou-se na Avenida Brasil, do juiz trabalhista Orlando Silva Oliveira, atropelava e matava uma doméstica na Rua Haddock Lôbo. Filas extensas na Rua Barata Ribeiro e Av. Nossa Senhora de Copacabana. Casas comerciais, mercearias, bares, cafèzinhos, restaurantes, continuavam a atender ao público, normalmente, embora devagar e em grupos, pois entravam poucos consumidores nas lojas ao mesmo tempo. Soldados do Exército patrulhavam as ruas, nas proximidades da praia, cujo ambiente era de otimismo, com populares se manifestado:
- Isso não vai dar em nada. (Era o lugar-comum e denominador das crises brasileiras: a inclinação do brasileiro para resolver tudo sem sangue e que a calma devia prevalecer.) Na Rua Sá Ferreira meninos e meninas iam até a praia (aproveitando o feriado escolar de fato e de direito) buscar areia para barricadas. Populares, solidários ao Forte de Copacabana, que àquela hora já aderira, isolavam, com cordas, tôdas as ruas. À tardinha. Dois tiros vinham do Leme. Era o sinal de vitória, que acionou o gatilho da explosão popular. E tudo se misturou na chuva, alegria e carnaval, refletidos nos olhos dos soldados que ocupavam o Forte de Copacabana, patrulhas do Pôsto Seis. Uma história: homens, mulheres e crianças, empunhando bandeiras, lenços brancos, lençóis, comemoravam o que ficou sendo o carnaval da vitória. Das janelas dos apartamentos em tôda a Zona Sul, eram estendidos lençóis e colchas, numa homenagem à vitória da revolução. E duas chuvas se misturaram no espaço: a que caía de muito alto, de água, e a de papéis picados. E uma caravana de automóveis, buzinando, vespas nas avenidas e ruas de Copacabana, de Botafogo, do Jardim Botânico, do Leblon e Ipanema. Era a festa da vitória. |
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