31 de março – de manhã – São Paulo amanhece sob a repercussão da manifestação dos sargentos e do discurso do Presidente Goulart na Guanabara e a notícia de mobilização em Minas Gerais. No Palácio dos Campos Elísios o clima é de nervosismo. O Governador Adhemar de Barros nega-se a falar à imprensa e mantém reunião secreta com o Deputado Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara Federal. De prontidão e com tanques em fila no Ibirapuera, o II Exército não revela seus objetivos. Muitas notícias continuam a chegar de Minas Gerais. A 4ª Região Militar teria deslocado suas tropas para a fronteira com o Estado do Rio. Anuncia-se manifesto do Governador Magalhães Pinto. De tarde – Comenta-se no Palácio dos Campos Elísios que o Governador passara a madrugada do dia 31 em Belo Horizonte, com o Sr. Magalhães Pinto. O Governador de Minas lança manifesto à Nação: “o Presidente da República subverteu a disciplina e Minas se levanta para garantir a normalidade constitucional”, diz. Correm boatos de que Minas se proclamaria “território nacional livre” com Constituição própria, inclusive. O Governador Adhemar de Barros afirma que “não existe mais o regime federativo no País”. Nas ruas há um evidente nervosismo. As calçadas estão cheias de gente agitada que corre aos bancos, os quais, sem cobertura do Banco do Brasil, vão pagando cheques enquanto têm dinheiro e depois fecham suas portas. Com exceção dos bancos mineiros que fecharam as portas antes e se negaram a pagar. Apurou-se que assim fizeram por recomendação do Governador Magalhães Pinto. Sabe-se que as tropas do Exército em Minas estão sublevadas. Chegam notícias dos deslocamentos de tropas da Guanabara para enfrentá-las. Teme-se o choque. O Governador paulista continua se recusando a falar. Igualmente o General Kruel, comandante do II Exército. De noite – Às 19 horas o Governador ainda se recusava a falar, mas às 20,30 horas gravaria um vídeo-tape com uma declaração de apoio ao movimento de Minas. Antes, porém, de divulgado o documento de Adhemar, era Magalhães Pinto quem falava outra vez: “Temos certeza da ajuda de São Paulo. Com São Paulo ao lado de Minas, a vitória será rápida”. Depois de incidentes com funcionários federais que queriam impedir a transmissão, a fala do Governador Adhemar de Barros foi, afinal, ao ar, por uma cadeia de rádio (mais tarde também de TV) às 22,30 horas. Os policiais afirmam que vão invadir o prédio da CTB. Preparam-se, isolam a área, afugentam os curiosos, começam a entrar por uma porta lateral, armadíssimos. A rua está escura por causa do racionamento, a noite é de garoa e há um grande silêncio. Dezenas de jornalistas esperam em silêncio do lado de fora. Os minutos passam e não há tiros. Os repórteres intercedem em favor do colega, fazem apêlo ao Secretário de Segurança, o tempo passa, não há tiros, nem solução. Pouco antes da meia-noite é divulgada a posição do General Amaury Kruel, comandante do II Exército: apóia o movimento de Minas Gerais, contra o “jugo vermelho”. Tendo-se o Exército mostrado aliado e não havendo nenhum outro incidente em todo o Estado, o Governador Adhemar de Barros tem agora um só ponto de resistência em seu território: 32 homens fechados dentro do prédio da CTB. As ordens de prisão a qualquer preço são renovadas. A adesão do Exército alivia evidentemente as expressões dos policiais. Como há elementos do Exército dentro do prédio, a Secretaria de Segurança pede ajuda ao Exército para resolver a questão. Um tenente-coronel não identificado pelos repórteres chega ao prédio logo depois. Entra e não volta mais. “Foi preso como refém”, dizem os policiais. Um pelotão de soldados do Exército chega logo depois. Os soldados estão muito nervosos. De madrugada – O tempo passa e a única notícia que se tem é de que o tenente-coronel não voltou mais ao andar térreo (o resto está tomado pelos que resistem). Anuncia-se a censura das estações de rádio, jornais e televisão. Baixada portaria a respeito, pelo Govêrno. Eram 1,40 horas da madrugada quando a voz do Governador voltou ao ar. Informava que havia seis Estados sublevados para derrubar o Sr. João Goulart, a quem o Governador chama de “ex-Presidente”. Os Estados sublevados são Minas, São Paulo, Paraná, Goiás, Mato Grosso e Rio Grande do Sul. Anuncia a união do govêrno de São Paulo como II Exército. Notícias de Santos – mais tarde confirmadas pelo próprio Governador – davam conta, pela madrugada, de que vários líderes sindicais haviam sido presos, o Fórum Sindical de Debates invadido e pôsto fora de ação pela Polícia Estadual. Enquanto isso, mantinha-se o impasse na Telefônica. As luzes do prédio agora estão tôdas acesas, há boato de que os sitiados fugiram. O tenente-coronel ainda não voltou, ninguém sabe onde estará. Às 3,30 horas o jornal “Última Hora” é cercado pela Polícia Estadual e, posteriormente, invadido sem resistência. Sua edição é impedida de circular e o jornal passa a ficar sob controle do Govêrno do Estado. Às 5 horas – quase claro – o tenente-coronel desce e informa: “Nelson Gatto e seus homens fugiram. Presumo que fugiram pelo telhado. Não fui prêso por êles. Perdi todo êste tempo procurando-os pelo prédio sem os achar”. O que os jornalistas concluíram, porém, é que o choque, que seria violento, foi contornado por conversações e dada a Gatto a oportunidade de evadir-se. A madrugada termina com a Polícia correndo para um prédio próximo, supondo que Gatto para lá tivesse passado e pretendendo ali cercá-lo novamente. Foram vãos seus esforços. Manhã de 1º de abril – A chuva tantas vêzes anunciada pelo Sr. Adhemar de Barros chegou de duas formas: uma, natural, garoa fininha, bem paulista, molhando o asfalto das ruas; outra – aquela a que se referia o Governador – simbolizada pelos carros de tropas que se movimentavam em tôdas as direções e pelas metralhadoras e fuzis embalados. Foi sob as duas chuvas que o povo saiu às ruas, como todos os dias, para as fábricas, para os escritórios, para as lojas. Nisto São Paulo não se alterou. Apesar da tensão, da expectativa e da apreensão estampadas em todos os rostos, o povo foi trabalhar. A primeira alteração notada na fisionomia da cidade foi congestionamento maior do tráfego nas imediações de quartéis, saídas para as rodovias, estações ferroviárias e outros pontos estratégicos, todos ocupados por soldados do Exército e da Fôrça Pública. Quarteirões inteiros estavam isolados e, em alguns pontos, armadas barricadas com sacos de areia e arame farpado. O Palácio dos Campos Elísios estava isolado e protegido por um cinturão de segurança que abarcava quatro quarteirões em tôrno. O movimento de tropas do II Exército, iniciado às primeiras horas da madrugada, continuava. Pela manhã eram embarcados na Estação Roosevelt (Central do Brasil) duas dezenas de carros-tanques com destino ao Vale do Paraíba, já então sob o contrôle do II Exército. Apesar dessa intensa movimentação de tropas, a situação era de calma em todo o Estado. O Palácio dos Campos Elísios distribuiu comunicado do Governador Adhemar de Barros concitando o povo a manter-se em calma e, logo mais, por ordem do govêrno, eram requisitados todos os estoques de combustíveis. Enquanto isso o QG do II Exército distribuía comunicado dizendo “considerar muito boa a evolução dos acontecimentos, particularmente pelo número de adesões de Estados da Federação, com seus govêrnos e tropas militares nêles sediadas”. O Govêrno do Estado e o II Exército dominavam inteiramente a situação. Além do episódio da noite anterior, quando o Gen. Puertas e o Jornalista Nelson Gatto tomaram o prédio da Companhia Telefônica, não se verificou nenhum outro movimento de resistência ostensiva. Em Santos, porém, amanheceu paralisado o pôrto. A COSIPA, as indústrias petroquímicas de Cubatão e a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí foram igualmente paralisadas pelo movimento grevista em solidariedade ao Sr. João Goulart. Grandes contingentes do DOPS e da Fôrça Pública ocupavam tôda a Baixada Santista e, por volta das 9 horas, choques da Polícia Marítima invadiram a sede do Sindicato dos Estivadores. Foram efetuadas detenções de vários elementos ligados aos sindicatos. Durante todo o dia seriam detidos mais de duzentos comunistas. Alguns dos mais ativos líderes sindicais desapareceram. A Alfândega e demais repartições federais foram ocupadas pela Polícia. Ainda na parte da manhã foi aberto o voluntariado. Um no Ginásio do Departamento de Educação Física e Esportes, por um ex-comandante da Revolução de 32, Cel. Homero Silveira, e outro no local onde funcionava o escritório regional da SUPRA. Antes de ser transformado em pôsto para alistamento de voluntários, o escritório da SUPRA foi vistoriado por elementos do DOPS, que ali aprenderam material de propaganda da Reforma Agrária. No fim do dia, só no primeiro pôsto haviam-se apresentado mais de quatro mil voluntários.
A tarde começou com uma proclamação do Governador Adhemar de Barros. “Como um só corpo. Como uma só alma, ergue-se a gente paulista”, dizia o Governador, em sua oração transmitida pelo rádio, logo depois do meio-dia. O povo paulista, acrescentava, “ergue-se mais uma vez na defesa dos ideais democráticos, na salvaguarda do valôres supremos de nossa civilização cristã”. E mais adiante: “Com o Exército, a Marinha, a Aeronáutica e a Fôrça Pública, com o apoio de tôdas as suas classes sociais, ressurge o São Paulo eterno para a eternidade do Brasil”. As constantes notícias difundidas pela “Rêde da Democracia”, que transmitia da Secretaria de Segurança Pública, informavam sôbre as adesões recebidas em vários pontos do País pelas fôrças contrárias ao Govêrno do Sr. João Goulart. O noticiário do Rio, ainda confuso, sem determinar exatamente a posição do I Exército, ainda causava alguma apreensão, principalmente o cêrco do Palácio Guanabara por Fuzileiros Navais. À medida que o tempo corria, porém, o otimismo aumentava entre as autoridades e transbordava para as ruas. O General Aldévio, em rápido encontro com a Imprensa, disse que “movimento dessa natureza estava previsto nos planos Alvorada, Eclipse e Boreal”, referindo-se à crise político-militar. Tais planos foram elaborados por uma equipe de técnicos estrategistas quando o general assumiu, em 63, a Pasta da Segurança. Sua confiança em que as autoridades paulistas e o Exército dominavam inteiramente a situação foi demonstrada pelo fato de serem retirados os carros blindados da Fôrça Pública, que haviam tomado posição em pontos estratégicos da cidade, pois a calma era “absoluta”. Outro fato que justificava otimismo: a solicitação de conferência feita pelo General Morais Âncora ao General Kruel. Êste já se dirigia a Resende, onde se realizaria o encontro para parlamentação. Às 17 horas, havia intensa expectativa nas ruas. Logo, um boato lançado pela emissora que encabeçava a “Rêde da Democracia”, sôbre a “renúncia” do Sr. João Goulart, provocou uma explosão de contentamento, com a reunião imediata de várias autoridades no Palácio dos Campos Elísios, para “festejar o acontecimento”. Nas ruas centrais começou a cair uma outra chuva, desta vez de papel picado que caía em grande quantidade dos edifícios dos escritórios. Estudantes da Universidade Mackenzie chegaram a organizar uma passeata que percorreu as ruas do centro. Essa manifestação quase gerou um incidente de graves conseqüências, quando o grupo de estudantes tentou manifestar o seu apoio ao General Kruel. Apareceram de repente na Rua Conselheiro Crispiniano, onde se localiza o edifício do QG do II Exército. Os soldados que mantinham guarda chegaram a apontar as suas armas, mas logo tudo se esclareceu. E os estudantes continuaram em sua passeata, dando vivas à democracia e à liberdade e aplaudindo os carros blindados da Fôrça Pública que passavam de volta ao quartel. Nos jardins dos Campos Elísios, tomados pelo povo e por autoridades, o clima era de euforia. O Governador Adhemar de Barros saiu e, logo após, fazia uma proclamação conclamando o povo a não se exceder em manifestações, pois considerava cedo para se “festejar a vitória de uma luta que mal começou”. “- A erva daninha da infiltração comunista” – disse – “continua entre nós. Só haverá vitória, realmente, quando vencermos a resistência dos que, da retaguarda, impulsionaram as autoridades federais”. E mais adiante: “- A vigília não pode terminar. É preciso evitar a guerra civil dos desesperados. Mantenhamos alerta permanente. Agentes de Pequim, Moscou e Cuba não se entregaram ainda, mas nós vamos caçá-los de agora em diante”. A fala do Governador e, mais tarde, o desmentido da renúncia do Presidente, foram como água na fervura. E a noite desceu sôbre São Paulo. Com uma constante e fria garoa.
Os constantes comunicados das autoridades estaduais e do II Exército, dando conta da marcha dos acontecimentos em todo o País, deixavam claro às primeiras horas da noite que o movimento iniciado em Minas Gerais estava vitorioso. A única nota dissonante (e isto não era notificado) era a tomada de posição de Brizola no Rio Grande do Sul. Antes da meia-noite, o General Kruel voltava a São Paulo, vindo de Resende, onde fôra triunfalmente recebido pelos cadetes de Agulhas Negras. A conferência com o General Morais Âncora não chegara a se realizar, pois o I Exército aderira quase totalmente ao Gen. Kruel.
A madrugada chegou com a notícia da viagem do Presidente Goulart para Pôrto Alegre, onde “assumiria a resistência”. E a madrugada trouxe mais uma notícia importante: o Sr. Ranieri Mazzilli é o nôvo Presidente do Brasil, por decisão do Congresso Nacional. E a garoa continuava a cair sôbre a calma da cidade. |
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